Mello Moraes Filho e Fazenda Grande do Retiro: gênese de algumas questões socioculturais
Cristiano Silva Cardoso*
Rita de Cássia Oliveira Pedreira*
Por volta de 1940, surge na capital baiana o bairro de Fazenda Grande do Retiro, e com ele uma homenagem a Mello Morais Filho que dá nome a sua principal rua, remetendo-o desta forma, à memória do intelectual que sempre buscou registrar e valorizar as festas populares no Brasil, tornando-se um defensor das manifestações nacionais por temer o perigo da excessiva valorização dos hábitos de imigrantes europeus protestantes no final do século XIX (ABREU, 1997). Exaltava a nacionalidade brasileira católica presente nas festas, que segundo o mesmo, nas suas práticas além de trazer a contribuição de diferentes matrizes formadoras do país, proporcionavam o encontro de diferentes segmentos sociais e étnicos, misturando costumes e pessoas através do lazer. Personagem de uma época que buscou enfaticamente inserir o componente simbólico das distintas comunidades locais, enquanto um legado cultural a ser valorizado, sobretudo, o africano que em terras brasileiras foi reelaborado guardando, entretanto, fundamentos históricos e mitológicos das regiões da África, amalgama que envolve elementos reinventados à atmosfera cristã, sem perder a essência que lhes dá sentido. Representou, por isso mesmo, um ponto de inflexão, pela valorização cultural de grupos marginalizados nacionalmente indo de encontro a posicionamentos “arquétipos”, do imaginário cultural dominante relacionado à questão racial, numa atuação estruturada na inter-relação e retroalimentação de conhecimentos sobre uma produção cultural nacionalista e popular que mais fortemente a partir de 1930, influencia um hibridismo de concepções, envolvendo desde filosofia social a história e a literatura, marca indelével no trabalho de intelectuais como Gilberto Freire.
O Cotidiano desta de paisagem urbana soteropolitana e seu conteúdo social vivo e pulsante são, sem dúvidas, um reflexo direto de uma população de baixa renda, na grande maioria negra que, ao permutar elementos culturais diversos, contribuem para a formação da longa saga dessa metrópole (Salvador) e que envolvem elementos reinventados, incorporação de visões de mundo, formas de vida e ações específicas tanto de continuidades quanto de rupturas, dando-lhe face única (genuína), e que “volta e meia” descortinam a pseudo-homogeneidade impressa ao território da classe popular. A sua principal função é servir de abrigo ao crescente contingente de trabalhadoras e trabalhadores (empregados ou desempregados) nos mais variados setores, indo desde domésticas a mecânicos, artistas, médicos, jornalistas, metalúrgicos, atletas, advogados, comerciantes, comerciários e intelectuais, “ocupados” nos mais diferentes pontos da cidade, do estado e do país.
Diferente da maioria dos bairros da cidade, nesta localidade, equipamentos urbanos públicos e recintos especialmente reservados a recreação e lazer como jardins, praças arborizadas, quadras ou mesmo centro social urbano são inexistentes, fatos que tem aguçado um senso reivindicativo, visto por uns como “subversivo” - um grande desconforto ao poder público e aos conservadores, que supostamente chamam subserviência de ordem e tranqüilidade; e por outros, como ponto de partida de “plataforma política” - de inúmeras lideranças do cenário baiano, tanto de esquerda quanto de direita. Indivíduos que após eleitos esvaziam as discussões antes inflamadas pelos mesmos.
Logradouro conhecido das páginas do noticiário policial, aos finais de semana a Rua Mello Morais Filho ganha outra configuração multiplicando-se os personagens pontuais que em busca de certa notoriedade trivial, executam arbitrariedades inúmeras no local, desde manobras imprudentes com automóveis e motocicletas à utilização de maneira desrespeitosa do som automotivo, há relatos de práticas e delitos variados. Expedientes que são reprimidos de forma contundente pela força policial, permanentemente acusada de cometer excessos.
Aos finais de semana, a visão que se tem do local aproxima-se do formato de uma “arena de festas”, modificando completamente a dinâmica do bairro, pelo elevado número de pessoas que lotam bares e lanchonetes. É crescente a presença de comerciantes informais de bebidas e alimentos no ultra varejo, comumente vistos em tradicionais festejos de largo, e que disputam palmo a palmo as calçadas com transeuntes e o tráfego de veículos, também elevado nesses dias.
A centralidade do fluxo de pessoas se dá justamente na Praça Catulo da Paixão Cearense, largo onde se localiza a EGBA (Empresa Gráfica da Bahia), órgão instalado em 1972, que atualmente é pauta de uma grande discussão na comunidade por conta da sua escassez de espaços para o lazer e recreação, frente à área ocupada pela empresa que alega necessidade de expandir-se para continuar competitiva.
Há no local uma convergência de linguagens entre o novo e o velho, e que vão desde capoeira, cultos afros, comunidades evangélicas, grupo espírita, católicos, associações de moradores como a Unidos de Fazenda Grande do Retiro, (criada em 1966), escolas públicas como a Municipal, Dois de Julho, Austricliano de Carvalho, Bento Gonçalves, Dom Avelar, Centro Social Dom Lucas, ligas e grupos esportivos nos mais variados segmentos como dominó, skate, bicicleta, atletismo, grupos culturais de hip hop, pagode, axé, expoentes e apreciadores do reggae, entre outros, que revelam e dão sentido a mundialização enquanto processo de construção da sociedade urbana, produzindo novos modos de vida, valores comportamentais, cultura, estética e etc, assegurando a materialidade do processo que se realiza no imediato, vivido, dando-lhe dimensão real e concreta (CARLOS, 2000).